Negócios do Esporte

A amnésia seletiva de Nizan Guanaes

Erich Beting

Nizan Guanaes é, há quase uma década, um dos principais responsáveis por propagar e promover a marca do Brasil pelo mundo. O publicitário dono do grupo ABC talvez seja uma das figuras mais influentes no exterior naquilo que diz respeito à promoção do Brasil. A audácia de Nizan em levar suas agências para fora, em exportar o Brasil, em cultivar aquilo que há de melhor no país e em colocar seu trabalho e, consequentemente, o país em pé de igualdade com o que há lá fora é louvável.

Mas, no que diz respeito à Copa do Mundo, o publicitário parece sofrer de uma amnésia seletiva.

Na última terça-feira, em artigo publicado na ''Folha de São Paulo'', mais uma vez Nizan convoca as pessoas a usar o Mundial como plataforma para impulsionar o país e promovê-lo mundialmente. Sob o título de ''Enchendo a bola do Brasil'', o artigo procura defender que o Brasil tem um grande legado com a Copa do Mundo, que é o evento ter aflorado a nossa capacidade de reclamar, protestar.

É lícito e absolutamente válido esse pensamento. O ''despertar'' do gigante talvez seja, realmente, o melhor benefício palpável que exista neste momento pré-Copa do Mundo. Ainda que muito do discurso anticopa seja vazio, ou maquiado, é fato que nos tornamos muito mais críticos a partir do momento em que questionamos se todo o esforço que está sendo feito é válido ou se temos outras prioridades atualmente.

Só que, ao defender o direito de reclamar e conclamar para que as pessoas, nos 30 dias de Copa, esqueçam as mazelas e tratem tudo numa muito boa, como se não houvesse problema em absolutamente nada, Nizan peca pela amnésia.

Não foi a mesma agência África, da qual ele é dono, que criou a campanha ''Imagina'', para a Brahma? Não era essa agência que defendia que os ''pessimistas de plantão'' tinham de parar de reclamar do caos que haveria na Copa e substituir o bordão ''imagina na Copa'' por ''imagina a festa''? Como pode, então, a mesma pessoa que defende isso numa propaganda vir dizer que o legado do evento é termos aprendido a protestar?

Isso não é ser pessimista de plantão? Ou será que defender os protestos não é apenas aproveitar o momento para não levar bordoada por ser ''ufanista de plantão''?

Se tivesse comparecido, a negócios ou a lazer, em outros megaeventos, Nizan saberia que eles são, em qualquer rincão do planeta, excelente e importante plataforma para protestos. Os grandes eventos esportivos são momentos muito bem apropriados por minorias para exporem suas necessidades. É uma espécie de ônus que eles pagam por terem se tornado tão poderosos. A mídia de todo o mundo está lá. E, como boa mídia que é, está no evento ávida por notícia, a favor ou contra, mas que cause repercussão.

Em 7 de julho de 2005, o metrô de Londres foi atacado por uma série de atentados a bomba. Dois dias antes, a cidade havia sido escolhida sede dos Jogos Olímpicos. No verão de 2012, tudo transcorreu em paz na cidade britânica, mas diversos pequenos protestos, de diferentes etnias, eram presença constante na estação de Stratford, ponto de parada do metrô que levava ao Parque Olímpico. Ainda bem!

Em março de 2008, pré-Jogos Olímpicos de Pequim, uma série de protestos pró-independência do Tibete eclodiu não apenas na China, mas em diversos outros países. Algumas dezenas de mortos foram contabilizados oficialmente pela sempre obscura ditadura chinesa. Fazia muitos anos que não se dava tanta voz e mídia para isso.

Por aqui, o que acontece no Brasil desde junho de 2013 é não só a conscientização de que temos de protestar por melhorias no dia-a-dia. É, mais importante, a certeza de que temos ainda muito a evoluir como nação. Ainda temos muitas falhas, assim como temos gigantescas virtudes. Felizmente nossos protestos são, comparativamente, muito mais tupiniquins, com bastante festa e pouca violência. Ou, pelo menos, menos violência do que em outros países.

O discurso de que é preciso empurrar essas mazelas para debaixo do tapete enquanto as visitas estão em casa é de uma tremenda ignorância. Tão ignorante quanto aqueles que discursam que a Copa do Mundo só teve roubalheira de dinheiro e foi um desperdício de dinheiro público.

O país investe, e muito, no Mundial. Cerca de 90% da conta está nas nossas costas. Mas essa é a realidade de qualquer organização de megaevento esportivo. Desde 1998, entre Copas do Mundo, apenas a Alemanha teve investimento público próximo dos 50% para realizar o evento. As demais sedes precisaram, e muito, do dinheiro do povo para deixar a Copa em pé. No Japão, na África, no Brasil. Países completamente distintos, mas que não escaparam do óbvio. Para dar infraestrutura suficiente para a demanda do evento, é preciso investir. E construir estadas, aeroportos, etc. é função de governo, na maioria dos casos.

Podemos e devemos, logicamente, protestar contra a péssima condução da construção do país da Copa. Deveríamos estar com novos aeroportos já há pelo menos dois anos. Com o trem-bala ligando as duas cidades mais populosas da nação. Com várias e várias outras obras de infraestrutura que atenderiam às necessidades já estranguladas de um país em crescimento, mas que tem ficado estagnado pela falta de ampliação da capacidade em absorver mais gente, mais consumo, mais conhecimento.

Nos tornamos mais críticos, e isso é um legado concreto da Copa do Mundo. Mas que o ímpeto em manter a crítica não desapareça só porque temos visita na sala. Os bons amigos nos conhecem nas virtudes e nas fraquezas. Fingir que tudo é uma maravilha quando poderia ser muito melhor é fazer uma grande – e falsa – festa. Nós não precisamos imaginar a festa. Sabemos fazê-la como poucos países no mundo. Mas não podemos deixar os problemas de lado. Festa boa tem bebida gelada e música até o fim. Se não tem, é preciso protestar. Do contrário, faríamos papel de idiotas.

E, se a amnésia seletiva de Nizan Guanaes voltar a atacar, vale um dado curioso.

Enquanto os protestos nas ruas atualmente envolvem cerca de 1.500 pessoas, nas estimativas mais otimistas, o Tour da Taça da Copa do Mundo, que tem passado por todas as capitais do país desde 22 de abril, está com uma média de 10.000 visitantes por dia, com ingressos numerados. Mas esse evento é promovido pela concorrente do cliente de Nizan. Aí, talvez, não tenha havido interesse em usar como argumento de que protestos e Copa do Mundo podem conviver em perfeita harmonia…