A democracia da arquibancada deu um show no Pacaembu
Erich Beting
A arquibancada é o espaço mais democrático que existe. Essa é uma máxima imortalizada pelo futebol já de muito tempo, na era Rodriguiana, quando Nelson Rodrigues cunhou algumas expressões fundamentais para o desenvolvimento da cultura futebolística brasileira.
Mas se tem uma ''máxima'' que se tornou ''mínima'' nos últimos anos foi essa. A democracia da arquibancada deixou de existir a partir do momento em que foram se formando grupos representativos de alguns perfis de pessoas dentro de um estádio. Organizados sob o prisma da ''torcida organizada'', esses grupos foram, aos poucos, tolhendo a liberdade de livre expressão numa arquibancada.
Primeiro foi o direito de torcer pelo adversário. Foi a partir da união do torcedor em grupos que os torcedores tiveram de ser, a exemplo de animais incontroláveis, separados dentro do espaço físico de um estádio.
Depois, passou a ser o direito de torcer cada um a sua maneira, mesmo que fosse pelo mesmo time!
Ir a uma arquibancada e dividir o mesmo habitat de uma torcida organizada significa, necessariamente, ter de obedecer às regras desse grupo. Você tem de cantar aquele determinado hino naquela determinada hora. É preciso ''seguir a corrente'', mesmo que para isso você tenha de ir contra algum de seus princípios. E a regra, seja na Rua Javari ou na Fonte Nova, é sempre a mesma. Siga a voz de comando da ''organizada'' e vai com a turma.
Isso é bonito para o espetáculo. Permite que tenhamos música, festa, incentivo. Faz de um estádio de futebol uma alma pulsante. Mas a realidade é essa. Não é uma democracia. É a ditadura, quase sempre à força, de ir com a ''torcida''.
Só que a democracia voltou a vencer na noite da última quarta-feira, no estádio do Pacaembu. O torcedor ''comum'' não quis seguir a torcida ''organizada'', que pedia para não incentivar o time. O registro feito pela Globo do comportamento dos torcedores é um daqueles trabalhos jornalísticos de dar gosto. Captou onde estava a notícia dentro do modorrento Corinthians 0x2 Bragantino. Registrou exatamente onde está a tensão dentro da torcida alvinegra (veja aqui).
O conflito de ontem no Pacaembu mostrou que a democracia pode superar a ditadura, mesmo dentro de um estádio em que a força opressora da organizada é quase sempre maior que a paixão do torcedor comum pelo clube.
O torcedor que invade o centro de treinamento para cobrar os atletas não tem legitimidade para falar em nome de milhões. Da mesma forma que, não necessariamente, representa os milhares de uma torcida organizada. Mas uma coisa é certa. O espaço de uma arquibancada tem de ser democrático. A resposta dada ontem pelos corintianos é um sinal de alerta para as torcidas organizadas.
Cada dia que passa, a legitimidade dos ''organizados'' para falar em nome da torcida de um clube é menor. Estrategicamente, os clubes precisariam perceber isso para virar o jogo em seu favor. É o melhor jeito de, sem brigas, acabar com algo que, se no passado ajudava a promover o espetáculo, hoje é em parte responsável pela baixa atratividade dele.
Afinal, a conexão do clube com o seu torcedor não precisa de intermediários.