Torcida única é a falência na gestão de eventos no Brasil
Erich Beting
O problema não é só uniformizado ou organizado, Gavião ou Mancha, Alvinegro ou Alviverde. Falta civilismo. Falta segurança. Falta tolerância. Falta respeito com o outro.
No início do ano, aqui em São Paulo, um funcionário da AES Eletropaulo (companhia de luz) foi sequestrado por moradores que estavam havia três dias sem luz em casa! O cara chegou para verificar o que acontecia na região do Butantã e foi rendido pelos pessoas que mandaram o cara trazer o papa para voltar a dar luz para a região. Não eram bandidos, sequer eram pessoas violentas. Eram cidadãos cansados de não ter o amparo público para as necessidades do cotidiano que, por lei, deveriam ser função do poder público…
Numa sociedade em que um funcionário da companhia de luz é sequestrado por moradores pela falta de luz na cidade, o problema da violência no futebol não pode ser confundido, de forma alguma, com falta de segurança dentro dos estádios!
A violência entre torcidas acontece no metrô, na rua, na chuva, na rua, na fazenda, ou numa casinha de sapé. Mas foi tirada de dentro do palco do show. E por que isso? Exatamente pelo fato de as brigas dentro dos estádios ter sido responsável por criar uma chaga profunda na imagem das torcidas uniformizadas.
O torcedor brigão será, sempre, o mais fanático. O torcedor organizado será, sempre, o mais fanático. Ele é o cara cego pela paixão pelo clube. É o cara que se recusa a comprar produtos Parmalat (no caso do corintiano) ou Pepsi (no caso do palmeirense). O comando das torcidas, porém, impediu que esse cara, por mais irracional que seja quando o assunto é torcida e time, de brigar dentro do estádio.
Quando a câmera de TV ou do fotógrafo flagra a imagem do cara dentro do estádio no meio de uma briga, ele cria uma exposição absolutamente ruim da torcida que ele representa. Sendo assim, por uma questão de imagem, que o cara vá defender as cores e credos da torcida na rua, na chuva, na fazenda ou na casinha de sapé. Mas não no estádio!
E aí é que está o ponto crucial de toda a história.
O problema é que transformamos, ao longo dos anos, o futebol numa guerra. O clima que existe dentro de um estádio não é de celebração, mas de ódio, de inimizade, de luta. É inconcebível pensar que não se pode colocar, juntos, corintianos e palmeirenses dentro de um mesmo espaço. Tão inconcebível quanto um funcionário da companhia de luz ser sequestrado por moradores.
''Essa é a decisão atual, tomada após a morte de um torcedor corintiano [na semana retrasada], trocas de ofensas e ameaças na internet''.
Essa é a resposta dada pelo promotor Paulo Castilho para Ricardo Perrone, em seu bolg no UOL, ao explicar o motivo de ele ter determinado que o jogo entre Palmeiras e Corinthians do próximo domingo tenha torcida única.
Sim. Volte lá para a frase. Decisão ''tomada após a morte de um torcedor corintiano''. Ela ocorreu na semana retrasada, supostamente fruto de uma briga entre torcedores de Palmeiras e Corinthians, na zona Norte de São Paulo.
A Arena Corinthians fica na zona Leste da cidade. O Allianz Parque, na zona Oeste. O Morumbi, na zona Sul.
Ao proibir a torcida de um outro time de entrar no estádio, o que a Federação Paulista de Futebol faz, pressionada pelo Ministério Público, é tirar o sofá da sala quando o marido traído vê a mulher com o amante ali naquele maldito móvel.
O maior erro cometido atualmente pelos gestores do futebol é de personificar a briga.
Ela não é fruto das torcidas organizadas, mas de fanáticos que são, diariamente, incentivados a achar que o time de futebol para o qual ele torce é a coisa mais importante da vida dele, a ponto de ele matar ou morrer por isso. É o discurso dos ''guerreiros'' no vestiário, é a imprensa indignada com a violência, mas dando destaque e incentivando que o dirigente ou o atleta tire sarro de forma pejorativa do time ou da torcida rival.
A irracionalidade do futebol é só mais um reflexo da violência da sociedade.
Fazer um jogo com uma torcida única não vai resolver isso. Pelo contrário, só vai estimular a segregação, o rancor, o jogo de empurra.
Como resolver a violência? É questão de usar a cabeça para propor algo diferente. Que a torcida do Corinthians tenha só crianças no domingo. Que elas não fiquem confinadas num espaço pequeno, correspondente a menos de 10% do bonito e imponente Allianz Parque.
Que essas crianças sejam ensinadas a gostar do bom futebol, independentemente do time que joga, e a ter sempre do lado um amigo do peito que torce para um clube rival. Afinal, a vida é feita de diferenças. E é preciso incentivá-las e, sobretudo, respeitá-las.
O futebol sempre tem a oportunidade de ensinar. A aula deste fim de semana, no Allianz Parque, será a de que a sociedade brasileira não sabe conviver com a diferença e que o poder público é incapaz de garantir a segurança das pessoas. Infelizmente…