Os dois lados do recorde dos direitos de TV inglês
Erich Beting
A marca conquistada pela Premier League, da Inglaterra, de ser o torneio de futebol mais valioso do mundo, como tudo na vida, tem dois lados. Se, sob uma ótica, o que os ingleses conquistaram foi fruto do caminho sem volta para a profissionalização do futebol tomado pelo país, por outro o alance da cifra recorde coloca o modelo inglês do futebol numa encruzilhada.
Desde que começou a remodelação do futebol no início dos anos 90, impulsionado por força de lei (qualquer semelhança com o Brasil atual não é mera coincidência), os ingleses sempre tiveram a NFL, liga de futebol americano, como exemplo para a questão das TVs, e a NBA, liga de basquete dos EUA, como exemplo para a expansão internacional da marca e do esporte.
O ''padrão NBA'' foi cumprido à risca já no fim dos anos 90, ajudado pelos fenômenos Manchester United e David Beckham. A Premier League é, hoje, o campeonato nacional de futebol mais internacional que existe. Nos últimos anos logicamente a Liga dos Campeões ganhou o status de mais transmitido, mas nas competições que só envolvem times de um mesmo país, a Inglaterra é insuperável.
Agora, os ingleses conseguiram atingir o ''padrão NFL'' na questão da venda dos direitos de TV. Os 5 bilhões de libras por três temporadas podem ser traduzidos, da melhor forma, pelo cálculo de que cada jogo da Premier League custará 10 milhões de libras (cerca de R$ 40 mi) para ser transmitido. Para se ter uma comparação com o mercado daqui, um jogo do Brasileirão custa, em média, R$ 2,6 milhão para a Globo. E estamos entre os cinco campeonatos nacionais de futebol mais valiosos do mundo, mesmo com a moeda desvalorizada!
Alcançada a cifra recorde pelos ingleses, o problema agora é outro. A partir do momento que o país adotou os Estados Unidos como modelo, criou para si um enorme problema. De que forma o futebol altamente profissional consegue sustentar o futebol tradicional? Hoje, na Inglaterra, só consegue disputar a Premier League o clube que tiver orçamento na casa dos 100 milhões de libras para cima. Para brigar por título, pode passar o cálculo dos 200 milhões, no mínimo.
Isso cria um problema para o futebol inglês. Aos poucos, a grana sufoca o clube menor, que geralmente foi aquele responsável por permitir a existência do futebol no país. Sem dinheiro, esse time deixa de figurar entre os maiores, mesmo ele tendo torcida, história, tradição.
Nos EUA, esse problema não acontece. Lá, o esporte profissional é privatizado. Ele pertence à liga, que tem nos times, cada um com seu dono, os seus sócios. Não existem mais do que 32 times profissionais no futebol americano. Ser um time profissional nos EUA significa pertencer a um clube VIP, em que a meritocracia esportiva é, antes de tudo, a meritocracia capitalista (o cara precisa ter dinheiro para ter um clube).
Isso permite que o modelo americano prospere de forma a gerar muita riqueza. Com o modelo fechado de poucos clubes, a concorrência pelo dinheiro, pela atenção do torcedor, pela mídia e pelos patrocinadores é muito menor. Na Inglaterra, por força da grana, a mesma situação começa a ser formada. O clube menor está sucumbindo a um sistema cada vez mais bruto de capitalismo. Tanto que os times que hoje estão na briga pelas primeiras posições da tabela são aqueles que foram vendidos para alguém.
Os próprios ingleses, tradicionalíssimos na arte de torcer, questionam a validade desse modelo. O futebol lá é um programa caro demais. O atleta ganha muito, a TV paga muito, o clube cobra muito para o torcedor fazer parte do show. Agora, para piorar, os clubes foram entregues a donos, muitas vezes bilionários de países emergentes que conseguem, finalmente, fazer parte de um clube seleto.
A Inglaterra copiou tão bem o modelo americano que começa a segregar pela força da grana o seu futebol.
A tal ponto que os ingleses acham que felizes são os alemães, que por força de lei obrigam os clubes a continuarem como entidades associativas tendo a maioria do controle nas mãos dos sócios, e não de pessoas ou empresas.
Na essência o futebol é democrático e de acesso a todos. O acúmulo de riqueza não pode levar à segregação. Esse é o maior drama vivido pela Inglaterra hoje. Por mais que seja impressionante o futebol inglês faturar R$ 20 bilhões só com direitos de transmissão, o modelo que levou a esse assombro é questionado por quem sente, na pele, que não é nada legal não fazer parte de um clube seleto.
O Brasil tem tempo para não cair na pegadinha do capitalismo selvagem promovido pelos ingleses. O duro é saber que tipo de modelo seria mais adequado pela complexidade que existe entre o futebol mais profissional de alguns clubes daquele ainda baseado no que eram os anos 50 e 60, quando só os atletas ganhavam (pouco) dinheiro com o esporte…