O futebol está cada vez mais inserido na sociedade
Erich Beting
A queda de Joseph Blatter manda um recado ao mundo do futebol. ''Após décadas, senhores, não é possível manter o futebol descolado da sociedade''.
Essa talvez seja a primeira lição a ser tirada do escândalo que vai mudando o status quo do esporte. Há 40 anos o futebol é comandado como se não houvesse mundo ao redor dele. As regras sagradas da bola não eram submetidas às regras da sociedade. Curiosamente, essa mudança de paradigma foi causada pela própria grandiosidade que a Copa do Mundo, principal evento da Fifa, passou a ter.
Em 2002, a entidade vivia acima do bem e do mal. Prova disso era que a Fifa se vangloriava de ter sido capaz de passar por cima até da histórica rivalidade entre Coreia do Sul e Japão. O Mundial abrigado em conjunto por dois países historicamente rivais era o exemplo perfeito de que, acima das relações humanas, está o poder da Fifa.
Veio 2006, e a Copa do Mundo na Alemanha mostrou outra vez a grandiosidade da Fifa. ''A Copa do Mundo é da Fifa. Ela apenas acontece na Alemanha''. Um mantra que foi repetido à exaustão por Joseph Blatter nos anos que se antecederam ao evento. A resposta vinha toda vez que alguém questionava o porquê de a Alemanha ter de aceitar, por exemplo, beber cerveja americana na Copa só por questões comerciais, ou então por que o país não poderia recolher impostos dos organizadores, que ficavam com os louros e os lucros do Mundial…
Em 2010, mais uma vez, o brilhantismo de se organizar a primeira Copa do Mundo no continente africano. Quem foi o único a olhar para o pobre povo africano, levando investimentos, gerando riqueza, construindo pontes? A ONU? A Cruz Vermelha? Não, claro! Foi a Fifa, essa entidade acima de qualquer outra, do bem e do mal…
Terminada a Copa sul-africana, a Fifa foi ainda mais longe. Decidiu, numa tacada só, escolher as sedes das duas Copas do Mundo que viriam só dali 8 e 12 anos. E aí foi que começou o início do enrosco da entidade. Quando escolheu Rússia e Qatar, em detrimento de nações mais desenvolvidas e sedentas pelo grandioso evento, a Fifa comprou uma briga das boas. Levar a alegria do futebol para todo o mundo é realmente algo muito bacana. Mas…
Um país sem qualquer histórico de envolvimento com o esporte como o Qatar?
Foi o início da gota d'água que transbordou em Zurique. Uma análise mais minuciosa revelou um esquema de compra de votos para a escolha do Qatar como sede. O caso colocou a Fifa em evidência, e todos passaram a questionar se a preocupação de seus dirigentes era com o jogo ou com os negócios. Mais um pouco de água transbordou do copo.
No ano passado, no Brasil, vimos de perto a realidade do ''Padrão Fifa''. Um rolo compressor que, em nome do jogo, cria uma série de regras e dificulta a vida de quem possa atrapalhar os seus planos. Talvez nem tanto por maldade, mas simplesmente por ser assim. Ou faz do jeito dela, ou assista à Copa do Mundo bem de longe.
O propalado ''legado'' da Copa se tornou pesado demais. A Fifa, para justificar os altos investimentos feitos por um país para abrigar a Copa do Mundo, tenta mostrar o lado positivo disso. Desenvolvimento urbano, crescimento econômico, geração de empregos, etc. O problema é que, desde 2002, quando o discurso do legado entrou em campo, a conta não fecha tão bem assim. Quando resolveu, então, levar a todos os continentes a alegria da Copa, a Fifa começou a levar, a todos os continentes, o questionamento de seu próprio jeito de ser.
Como começou a usar argumentos que interferiam no dia-a-dia da sociedade para justificar seus eventos, a Fifa começou a ser questionada também pelas pessoas sobre como ela tratava a sociedade. E foi a partir disso que começou a ruir um sistema iniciado nos anos 70, quando a Copa do Mundo começava a querer virar um evento mundial, sem ser algo apenas para brasileiros, argentinos e europeus.
Desde 1974 que o comando da Fifa pensa e age da mesma maneira. Se, lá atrás, esse jeito de ser foi essencial para fazer a Copa do Mundo virar esse evento grandioso, agora ele é responsável pela derrocada da entidade.
Não faz mais sentido a Fifa se colocar acima da sociedade. O futebol é legal, a Copa do Mundo é um espetáculo, mas nada justifica submeter-se a tantas regras duras de negócio para ter esse show perto de casa.
O próximo presidente da Fifa terá como missão fazer do futebol um esporte mais democrático para seus consumidores. Isso implicará em gestores mais próximos da realidade das pessoas e, logicamente, uma gestão muito mais racional, sob todos os aspectos. O problema é que é impossível a Fifa se tornar essa organização próxima da realidade com os filiados atuando da forma como é hoje. Mas, se a Fifa não mudar, o sistema irá implodir.
Quer dizer. O sistema já foi para o espaço. Nos próximos meses até a escolha do novo presidente da Fifa, o que veremos serão diversos dirigentes e sistemas de confederações sendo demolidos por todo o planeta. O futebol é feito pela sociedade. As entidades que regem o futebol é que precisam, agora, também passar a fazer parte da sociedade.