Blindagem à crise mostra demanda reprimida no futebol
Erich Beting
Será que existe uma espécie de “blindagem” que o futebol atravessa hoje em relação ao restante da economia do país? Na última segunda-feira, mostramos na Máquina do Esporte que, em 2015, só com os novos sócios-torcedores do Movimento por um Futebol Melhor, as receitas dos clubes aumentaram em 128%, em média, recorde histórico do programa que já vai para o terceiro ano (veja aqui).
Por que, em meio a um cenário de retração econômica, com todo mundo tirando o pé da gastança, cresce tanto assim um programa de adesão de sócios-torcedores?
A situação mostra que há uma demanda reprimida no futebol, que aos poucos começa a ser atendida, ainda de forma esporádica, pelos clubes. O Movimento por um Futebol Melhor talvez seja o melhor termômetro disso. Há três anos no ar, o programa tem mostrado para os clubes a importância de colocar o torcedor no papel de um consumidor ativo do esporte, gerador de receita importante para o clube e responsável por uma parte significativa da receita da entidade.
Antes de olhar para o sócio-torcedor, os clubes flertaram com a exploração do bom momento do varejo. Foi no começo da década, quando vivíamos a febre das lojas oficiais, na esteira do crescimento do mercado de franquias e no bom momento do varejo.
Agora a situação é um pouco diferente. Com dívidas e dúvidas, a população parou de consumir produtos. É só ver a crise que pega no varejo, com redução de metas e queda brusca de vendas. O sofrimento das franquias de lojas oficiais dos clubes nada mais é do que reflexo da crise que assombra o mercado varejista.
E aí é que entra o segredo do sucesso do programa de sócios dos clubes. O sócio-torcedor compra, ao pagar a mensalidade ao clube, um sonho. É a facilidade na compra de ingresso, é a oportunidade de ter uma experiência exclusiva com ídolos do passado e do presente, com o estádio do time, com o centro de treinamento, etc.
O único benefício real que existe é o desconto na troca de produtos das empresas parceiras, mas parece que essa lógica varejista não é fundamental para levar o torcedor a aderir aos programas, apesar de muitos se beneficiarem disso.
O fato é que o sócio-torcedor atinge o fã exatamente naquilo que faz dele um consumidor do esporte. De um ano para cá, os clubes aumentaram significativamente as ações de experiência única para a torcida. Sócios-torcedores podem ser gandulas, perfilar com o time no hino nacional, assistir ao jogo de uma poltrona na beira do campo, etc.
Essa é a demanda que estava reprimida no futebol. Os clubes tinham, até pouco tempo atrás, a visão de que o torcedor era obrigado a ser um consumidor do time de futebol. Ele tinha de comprar produto oficial, ir ao jogo, vibrar sem criticar durante a partida, etc. Não era uma via de mão dupla.
Como sempre digo por aqui, toda paixão precisa ser correspondida. O que essas experiências restritas a sócios mostram é que existe o interesse do torcedor de consumir esse tipo de produto. Mas, para isso, é preciso ofertar o serviço a ele.
Por meio dos sócios-torcedores, os clubes perceberam o óbvio. Existe um mercado consumidor grande para o futebol, que não sente tanto os efeitos da crise e se dispõe a gastar bastante para a paixão dele. Mas é impossível achar que esse consumidor estará lá se não houver o mínimo esforço por parte do clube.
A “bilndagem” do futebol à crise nada mais é do que a descoberta de que há um bando de gente que é apaixonada por aquilo, mas que precisa de um mínimo de motivação para fazer parte do negócio. Se o esporte brasileiro tivesse levantado os olhos para além da arena de disputa esportiva, conseguiria ter percebido a necessidade de atender esse público muito antes.
O topo da curva de consumo no esporte ainda está longe de ter sido atingido. Não é o futebol que está imune à crise, mas sim o fato de que ele não conseguiu entregar ainda todo o potencial de produtos que os consumidores querem.