Negócios do Esporte

O legado de Copa que não se soube vender

Erich Beting

Uma das maiores crises relacionadas à Copa do Mundo está no fato de que soubemos aproveitar nem um pouco o projeto de legado positivo que o evento realmente trará. Promessa de campanha de Fifa e Comitê Olímpico Internacional quando vendem a ideia de um país se candidatar a sede de seus eventos, o legado é hoje o Calcanhar de Aquiles no discurso referente à Copa e, muito provavelmente, será a bandeira levantada dos anti-Olimpíada a partir de agosto.

O fato é que não soubemos, desde o começo, a vender o projeto de legado. O que é legado? De que foma ele pode existir e em quanto tempo realmente sentimos os benefícios de um megaevento em nosso país?

Um dos grandes sucessos de Londres foi conseguir mostrar ao povo local que os quase 9 bilhões de libras que estavam sendo empregados para os Jogos Olímpicos de 2012 seriam convertidos em benefício direto às pessoas (às vuvuzelas de plantão, vale lembrar que o orçamento original da Olimpíada londrina era de 2,4 bilhões de libras). A entrega do maior parque público europeu em mais de cem anos, numa região desvalorizada da cidade, era um dos pilares mais repetidos pelos organizadores dos Jogos.

Por aqui, nunca nos preparamos para sequer saber responder à questão básica. O que é que queremos de retorno com Copa? Quase sempre repetimos as frases de COI e Fifa, sem ao menos perceber que a realidade de entidades baseadas na Suíça é, necessariamente, bastante distinta daquilo que temos por aqui. O que é vendido como legado para o dia-a-dia europeu não pode ser visto com os mesmos olhos por aqui.

 

O fato é que nunca tivemos um roteiro definido para determinar o que haveria, realmente, de legado para o Mundial. Atrasamos na construção do projeto da Copa. A começar pela politicagem que fez com que quase dois anos se passassem até que as 12 sedes estivessem definidas. Depois, levamos mais muito tempo discutindo assuntos distintos, como o estádio de abertura do evento, as requisições da Fifa para um ou outro local ser ou não aceito na Copa, etc. Mais uma vez perdemos meses preciosos para realizar licitações, começar obras e produzir, realmente, tudo o que era preciso para trazer um legado palpável para as pessoas.

Se o país da Copa tivesse ficado pronto há um ano e meio, como era previsto, estaríamos aproveitando terminais novos de portos, aeroportos, rodoviárias, ferroviárias e metrôs. Usaríamos transportes mais modernos e ágeis nas cidades. Faríamos jogos em estádios novos em folha, sem ajustes, remendos ou instalações provisórias. Estaríamos, agora, focados em discutir como fazer a festa, e não se o palco dela estará pronto.

O maior legado que uma Copa do Mundo pode trazer, para o país-sede, é a transformação da mobilidade urbana. Para atender a uma demanda reprimida no transporte público, as obras necessárias para receber no mínimo 50 mil pessoas por jogo, entre público e profissionais que trabalham no evento, seriam um grande benefício para a população.

Outras benesses intangíveis estariam nas construções de estádios em locais mais afastados dos grandes centros, levando maior população para regiões menos povoadas, reduzindo densidade demográfica e proporcionando o desenvolvimento de novas áreas urbanas. Em todo o caso da Copa, talvez Itaquera e a Arena Corinthians sejam, daqui a alguns anos, o maior exemplo dessa transformação provocada pelo estádio. Mas também pode acontecer isso em Recife, Cuiabá, Natal e Manaus, em escalas menores.

Para quem acha que isso é balela, basta ver o que significou para a cidade de São Paulo a construção do Aeroporto de Congonhas, em 1936, a 11km do centro, então região mais habitada da cidade. Ou do estádio do Morumbi, no fim dos anos 60, levando para o bairro paulistano uma grande massa de pessoas onde antes só haviam chácaras.

Por fim, a Copa do Mundo ainda pode significar um grande incremento no setor de serviços. O turista que vem para o Mundial precisa se hospedar, se alimentar, se locomover, etc. É dinheiro que entra, emprego que é gerado, aprendizado que é adquirido pelas pessoas que vão trabalhar, e muito mais coisas. E, na parte final do negócio, o impacto posterior no turismo.

Mas paramos no primeiro passo. Não terminamos o projeto da Copa. Não conseguimos entregar o projeto de mobilidade urbana. Nem mesmo os estádios estão, a 14 dias do evento, 100% prontos!!! Como dá para querer vender um legado se o presente não está pronto?

Só que esses são os problemas que nos atingem em nosso cotidiano. Durante a Copa, a pessoa que vier para cá vai vivenciar uma experiência espetacular. Elas não sabem o que significam esses nossos problemas. Elas com certeza esperam protestos a cada esquina e falhas em todos os cantos. Mas provavelmente voltarão encantadas com a beleza natural do país e a alegria contagiante do brasileiro em receber as pessoas. Porque isso é diferente por aqui.

Estive na Alemanha, em 2006, e na África do Sul, em 2010. Os alemães, naturalmente, cumpriram todo o roteiro. A Copa foi impecável dentro e fora de campo. Parecia inacreditável como tudo estava em ordem, no lugar, funcionando. Só na final, em Berlim, quando mais de 1 milhão de turistas de Itália e França chegaram por todos os meios de transporte possíveis à capital alemã, que a cidade entrou em colapso. Mesmo assim, o metrô levava você, sem grandes sobressaltos, ao estádio.

Na África, o cenário foi completamente diferente. As casas que foram alugadas estavam ''quase'' prontas (mudei de moradia no condomínio que a Band havia alugado por conta de problemas num dos quartos, depois vivíamos com vários blecautes se ligássemos luz, televisão e aquecedor ao mesmo tempo). Além disso, alguns estádios ainda tinham o pó da construção nos assentos, a tinta fresca na parede, o entorno com cara de semi-pronto. Os prestadores de serviço não estavam capacitados para atender à demanda, o que gerava falta de produtos nas lojas e restaurantes, demora excessiva para ser atendido, etc. O transporte público era inexistente, e todo trajeto que percorríamos eram em vans ou carros alugados (quando havia carro para ser alugado).

Seremos muito mais África do que Alemanha. Isso, para o turista, não é de se estranhar. Para o brasileiro, é de se lamentar. Deveríamos, pelo país que queríamos que fôssemos, estar mais próximos dos alemães do que dos africanos. Só que não temos a menor cultura de planejamento e execução de grandes projetos.

Não é um erro do país. É um fato. Durante décadas nos acostumamos a ter de colocar e tirar dinheiro de aplicações do banco para não ver nosso patrimônio se esvair em menos de um dia. Num mês, a inflação galopante obrigava-nos a comprar tudo quando entrasse o dinheiro e, a partir daí, ver no que ia dar para chegar até o dia 30. E por aí vai.

O que ninguém parou para perguntar é se tínhamos capacidade de receber uma Copa do Mundo com 12 sedes. Não tínhamos mão-de-obra capacitada para colocar o Brasil em pé. Ou melhor. Uma Copa em pé aqui no Brasil. Era muita obra para pouca gente apta a fazê-la. Era muita execução para pouco planejamento, etc.

Esses foram os erros primários que minaram a ''Copa das Copas''. E esse é o erro que o governo ainda insiste em cometer, de vender um projeto que não se realizou. Faremos uma baita Copa. Inesquecível para todos nós que teremos a chance de viver uma Copa do Mundo no país, feito que provavelmente não teremos a chance de vivenciar tão cedo. Mas ela não será a melhor da história.

Esse foi o legado que não soubemos vender. Por que, por todos os atrasos e erros cometidos, não será na Copa do Mundo que vamos perceber os benefícios que ela trará ao país. Precisávamos ter tido uma visão de longo prazo do evento, algo que nossas diferentes gerações nunca souberam ter porque nunca puderam viver pensando no longo prazo. Tentar vender benefícios com a Copa agora é continuar a procurar água no deserto. E a dar mais corda para que os movimentos de protesto tenham mais força.