Ciclismo e as cidades, questão de cidadania
Erich Beting
Mais um acidente estúpido aconteceu em São Paulo neste final de semana envolvendo carro e bicicleta. Com roteiro digno de filme de quinta categoria, a história aparentemente é a seguinte: uma pessoa embriagada brincou de fazer zigue-zague entre os cones colocados na Avenida Paulista para utilização de bicicletas na ciclofaixa, que abriria em questão de pouco tempo. O ciclista, que andava por lá, foi atropelado. No desespero, o motorista do carro fugiu, mutilando o braço do ciclista na arrancada. Para tornar ainda mais absurda toda a história, a pessoa jogou o braço dentro de um rio, cerca de 5 quilômetros distante do local do acidente.
A história precisa ser passada adiante, já que mostra o quão sem alma pode ser uma pessoa. Mas não pode, de forma alguma, ser usada para utilizar-se o bordão mais comum para esses casos ''não se pode ter bicicleta numa cidade grande''.
Primeiramente, tudo o que envolve o acidente deste fim de semana é uma questão de respeito às leis. O motorista do carro não poderia dirigir alcoolizado, muito menos ''brincar'' de fazer zigue-zague nos cones. O ciclista não poderia usar a ciclofaixa se ainda não estava no horário permitido.
O problema não é pontual, e é o maior motivo para explicar a estupidez que é o trânsito na maior parte das cidades brasileiras, talvez tendo em São Paulo a sua mais completa tradução. Numa sociedade em que o eu vem antes do todo (e é assim na maior parte dos lugares onde o conceito de meritocracia deturpou o conceito de vida em sociedade), a lei vira a do mais forte, ou muitas vezes como é o caso nas ruas paulistanas, a lei do mais rápido.
Por aqui, a moto anda mais rápido que o carro, que anda mais rápido que a bicicleta, que anda mais rápido que o pedestre. E assim é a cadeia involutiva das coisas. Se estamos acelerando na moto a 100 km/h numa via congestionada, o erro não é do motoqueiro imprudente, mas sim de quem resolveu atravessar o lugar na faixa, ou mudar de pista na avenida. Da mesma forma, quem está correto é o carro sobre a bicicleta, ou a bike sobre o pedestre.
Recentemente, uma pessoa tornou-se extremamente popular no Youtube por colocar vídeos das barbáries que cometia no trânsito paulistano. A bordo de uma moto, ele cruzava avenidas a mais de 100 por hora, passava sinal vermelho, desrespeitava conversões proibidas, etc. Virou herói por ser ''revolucionário''. Pateticamente, tentava ainda ser didático com os espectadores, repetindo o bordão ''não façam como eu'', assumido previamente a culpa pelas atrocidades cometidas.
No início de janeiro, esse ''cidadão'', dirigindo um carro, fez uma conversão proibida, atropelou e matou um pedestre. Que também estava errado, porque havia aproveitado a ''brecha'' para ultrapassar no sinal vermelho. Um não justifica o outro. Mas evidencia, junto com o macabro acidente de domingo, que o problema é muito maior do que simplesmente dar espaço para que bicicletas e carros convivam nas cidades.
Há espaço para carro e bicicleta. Cidades mais povoadas que São Paulo, como Nova York, ou com solo tão irregular quanto a capital paulista, como Bogotá, fizeram da bicicleta um meio de transporte para cerca de 3% da população. Sim, é pouco, mas pode significar, na prática, menos carro nas ruas, menos poluição no ar, mais saúde para as pessoas.
O país que mundialmente tem o maior índice de uso da bicicleta é a Holanda, com 26% das pessoas usando-a como meio de transporte. Por lá, colabora e muito o fato de o país ser plano. Mas também é essencial o respeito que as pessoas têm com o outro, esteja ele a pé, de bicicleta, carro ou qualquer outro meio de transporte.
Um país que usa mais a bicicleta é, estatisticamente comprovado, um país com menos acidentes fatais de trânsito, mais saúde e qualidade de vida entre as pessoas, mais felicidade em se viver e, sobretudo, mais respeitoso com o próximo. E esse é o ponto essencial para que a bicicleta se transforme num meio alternativo de locomoção para os brasileiros.
O convívio entre bicicletas e carros nas grandes cidades nada mais é do que o reflexo do convívio entre as pessoas num mesmo ambiente. Enquanto não entendermos que o essencial é respeitar o outro antes de pensar em si mesmo, será impossível evoluir.
O problema não é falta de espaço, mas de respeito entre as pessoas.